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🎭 Morrissey e a economia do cancelamento: quem paga pela devoção?


Morrissey (nascido em Manchester, Inglaterra em 22 de maio de 1959), ex-vocalista da lendária banda The Smiths e voz que moldou gerações inteiras, voltou a protagonizar o que já virou uma espécie de tradição indesejada: o cancelamento de shows, muitas vezes em cima da hora.


A mais recente vítima? A turnê latino-americana de 2025, incluindo São Paulo, novamente deixada para trás sob a justificativa de “extremo esgotamento”.


É o quarto cancelamento relevante no Brasil em pouco mais de uma década — uma estatística que, para qualquer outro artista, seria uma sentença de descrédito. Mas com Morrissey, tudo é mais ambíguo: o ídolo e o homem travam, há tempos, uma batalha entre o mito e o imprevisível.


🎤 Os cancelamentos: uma cronologia da decepção


No Brasil, já contabilizamos quatro capítulos nesse drama:


  • 2013 — Turnê sul-americana inteira cancelada por falta de financiamento.

  • 2023 — Shows adiados após diagnóstico de dengue.

  • 2024 — As datas remarcadas foram novamente canceladas, agora por “exaustão física”.

  • 2025 — Turnê latino-americana abortada por “esgotamento extremo”.


Eu mesmo estive lá em 2024, não no show, claro, mas na fila digital da esperança.


Comprei ingressos para ver Morrissey em fevereiro de 2024, acreditando que dessa vez seria diferente. Não foi. Quando anunciaram a turnê de novembro de 2025, poupei meu cartão e minha paciência. Afinal, ninguém precisa ser vidente para saber como essa história acabaria.


💸 Os custos invisíveis do cancelamento


No papel, cancelamentos podem parecer eventos administrativos — mas, na prática, são bombas financeiras e emocionais.


Contratos de turnê geralmente envolvem adiantamentos (geralmente cerca de 50% do cachê) para o artista e cláusulas complexas sobre força maior, seguros e reembolsos. Quando o artista cancela, a conta é dividida entre promotores, seguradoras e, claro, o público.


  • Promotores locais arcam com despesas de marketing, aluguel, equipe e logística — custos muitas vezes não cobertos integralmente por seguro.


  • Plataformas de ingressos executam reembolsos, mas quem absorve o prejuízo real são os organizadores.


  • Fãs perdem tempo, energia e, frequentemente, o desgaste para que recebam o valor do ingresso de volta, dinheiro com passagens, hospedagem e a expectativa de ver seu ídolo ao vivo — algo que não há seguro que cubra.


Em tese, há contratos e seguros para tudo. Mas há algo que documento algum protege: a confiança.


⚖️ Entre a devoção e a decepção


Não há evidência pública de má-fé — nada sugere apropriação indevida de depósitos ou adiantamento. Cancelamentos por questões médicas ou de segurança são justificáveis e previstos em contrato.


Mas a reincidência é o problema. Quando a exceção vira padrão, o discurso de “força maior” começa a soar como desculpa institucionalizada.


Produtores e seguradoras sabem disso. Cláusulas de penalização e exigências de laudos médicos são cada vez mais rigorosas — reflexo direto da desconfiança que o próprio histórico do artista ajuda a alimentar.


Entretanto, com tantos episódios acumulados, não será surpresa se, no futuro, produtores e casas de espetáculos pensarem duas vezes antes de apostar em uma nova turnê. A imprevisibilidade cobra caro — e confiança, nesse mercado, é moeda escassa.


💔 A relação de respeito: quem deve o quê a quem


Há uma linha tênue entre empatia e condescendência.


O fã não exige que seu ídolo seja uma máquina — apenas que haja respeito mútuo. O mínimo é comunicação clara, transparência e comprometimento.


Quando cancelamentos se acumulam e justificativas soam genéricas, o vínculo se rompe. E, junto com ele, vai embora algo mais valioso que o ingresso: a fé.


A sensação é de desrespeito. Não o desrespeito explícito, mas aquele frio e silencioso — o de quem sente que o artista já não vê o público como parte essencial da equação. E isso, para quem cresceu ouvindo This Charming Man e How Soon Is Now?, dói em outro nível.


🧩 Entre a obra e o homem


Separar o artista da obra é um exercício antigo, mas cada vez mais difícil. Podemos continuar adorando as letras, as melodias, o impacto cultural — mas, ao mesmo tempo, admitir que o comportamento recente compromete a relação.


É possível venerar The Queen Is Dead e ainda assim achar que a conduta atual de seu criador é, no mínimo, lamentável.


Morrissey ainda é um nome imenso, mas o encanto está se esvaindo. Cada novo cancelamento reforça a dúvida: estamos diante de um artista incompreendido ou de um profissional que esqueceu que há pessoas reais do outro lado do palco?


Fatos a considerar:


  • Em um show em Tucson, Arizona (2017), Morrissey abandonou o palco após apenas seis músicas, alegando que sua voz “estava ferrada”.

  • Em Los Angeles (novembro de 2022), ele subiu ao palco, fez cerca de 9 músicas e saiu abruptamente — sem aviso formal imediato — frustrando os fãs presentes.

  • Ele teve uma animosidade pública com Robert Smith (da banda The Cure): chamou Smith de “palhaço gordo com maquiagem chorando sobre uma guitarra” na imprensa musical dos anos 80.

  • Em 2014, surgiram alegações de que Morrissey teria exigido o cancelamento do show de outra banda no mesmo local (Santa Ana, Califórnia), porque ele não queria “sobreposição” de som — sua equipe negou, mas o episódio entrou para a lista de tensões de bastidor.

  • Em 2018, durante show em San Diego, fãs invadiram o palco; Morrissey interrompeu o show e não realizou o meet & greet habitual.

  • Em 2019, ele expulsou manifestantes de esquerda do seu show em Portland, gritando “Saiam daqui! Não precisamos de vocês!” — numa situação onde discurso político, plateia e palco se misturaram.


Esses episódios compõem um panorama que vai além de “turnê cancelada” ou “adiamento”; é uma sequência de comportamentos que alimentam a sensação de que há, sim, um descompasso entre o artista e o público — entre a obra que ele ofereceu e o homem que está por trás.


🎸 The Smiths: a herança que o tempo não apaga


Antes de se tornar sinônimo de polêmicas e cancelamentos, Morrissey foi metade de uma das duplas mais influentes da história da música britânica. Ao lado de Johnny Marr, guitarrista e compositor de uma sensibilidade melódica rara, ele redefiniu a estética do pop alternativo dos anos 80.


Entre 1983 e 1987, o The Smiths produziu quatro álbuns de estúdio — The Smiths, Meat Is Murder, The Queen Is Dead e Strangeways, Here We Come — que moldaram a sonoridade de uma geração.


As letras eram confessionais, por vezes sombrias, mas embaladas por guitarras cristalinas e arranjos de Marr que davam leveza à melancolia. Essa combinação criou um paradoxo irresistível: tristeza dançante.


Bandas como Radiohead, Oasis, The Cure (apesar das rixas), Blur, The Killers, Interpol, e até Arctic Monkeys reconheceram a influência direta dos Smiths — seja na poesia lírica, na estética minimalista ou na atitude introspectiva diante do estrelato.


Johnny Marr, por sua vez, seguiu carreira solo sólida, colaborando com nomes como Modest Mouse, The The, Talking Heads e The Pretenders, mantendo uma reputação de músico respeitado, discreto e generoso — quase o oposto do seu ex-parceiro de banda.


Enquanto Morrissey alimentava manchetes, Marr alimentava partituras.


O The Smiths permanece relevante porque foi mais do que uma banda: foi um estado de espírito. A trilha sonora de uma juventude sensível, cética e inteligente — gente que não se encaixava, mas encontrava consolo em versos como “I am human and I need to be loved, just like everybody else does.


❓ E afinal… você compraria ingressos para um próximo show do Morrissey?


Essa talvez seja a pergunta que todo fã se faz, silenciosamente, depois de cada cancelamento.


Entre o brilho da obra e o cansaço do artista, há uma linha tênue — e é nela que o público tenta se equilibrar. Porque amar Morrissey é aceitar um paradoxo: ele é, ao mesmo tempo, a voz que moldou uma geração e o homem que tantas vezes nos deixa esperando diante do palco vazio.


Amamos a poesia das suas letras, o sarcasmo elegante, o lirismo que transformou a melancolia em arte. Amamos The Smiths, uma das bandas mais influentes da história — e o diálogo musical entre Morrissey e Johnny Marr, que redefiniu o que significava ser sensível no rock.


Suas canções, seja ao lado do Johnny Marr ou em carreira solo continuarão eternas. There Is a Light That Never Goes Out ainda nos arrepia, Please, Please, Please, Let Me Get What I Want ainda nos fere com beleza, Everyday Is Like Sunday continua soando como confissão e consolo, Suedehead carrega aquela doçura triste que só ele saberia cantar, First of the Gang to Die nos lembra de sua força pop e Irish Blood, English Heart segue como manifesto pessoal e político — enquanto How Soon Is Now? permanece como um grito existencial atemporal, aquele eco solitário que todos nós, em algum momento, já sentimos.


Mas a relação entre artista e fã é um pacto de confiança — e cada cancelamento é uma rachadura nesse contrato invisível. O público entende doenças, aceita fragilidades, reconhece limites. O que não suporta é o descaso.


E então, diante de mais uma turnê cancelada, a pergunta volta a ecoar:


Até onde vai a nossa fidelidade a quem já parece ter desistido de subir ao palco?

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